Neste livro, apresentaremos os fundamentos teórico-metodológicos e os resultados que orientaram a construção deste projeto de pesquisa sobre o futuro do federalismo da saúde no Brasil, no âmbito do Centro de Estudos Estratégicos Antonio Ivo de Carvalho da Fundação Oswaldo Cruz (CEE-Fiocruz), que contou com o apoio financeiro de uma emenda parlamentar do Deputado Chico D’Ângelo do PDT e com a parceria técnica do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass). Diante de uma conjuntura sanitária da magnitude imposta pela pandemia de covid-19, os sistemas de saúde de todo o mundo sofreram tensões e ajustes, buscando formas de enfrentar um vírus desconhecido.
No Brasil, em um contexto em que o governo nacional assumiu uma posição francamente negacionista em relação aos conhecimentos que a ciência e a tecnologia foram desenvolvendo para responder à crise sanitária, rapidamente emergiu uma crise política de amplas dimensões, configurando uma conjuntura crítica que alterou as relações intergovernamentais e os padrões de atuação dos demais Poderes, como o Legislativo e o Judiciário.
Nesse processo, o arranjo federativo que resultou da construção do Sistema Único de Saúde (SUS) como um sistema universal, descentralizado e cooperativo foi expressivamente afetado pela ausência de coordenação federativa nacional, o que redirecionou as pressões para os demais atores e instituições, levando à emergência de inovações expressivas que impulsionaram relações mais horizontalizadas e cooperativas entre os governos estaduais e municipais.
Analisar a dinâmica das instituições federativas no Brasil, no contexto da pandemia de covid-19, e suas possíveis tendências, inovações e limites no que se refere às relações de poder e ao modelo de gestão de políticas no campo da saúde! Esse foi o objetivo do projeto intitulado “Novo Federalismo no Brasil? Tensões e inovações em tempos de Pandemia de Covid-19”, com enfoque em instituições, atores, arenas e dispositivos federativos, bem como no papel desempenhado pelos Três Poderes da União, os estados, os municípios e a sociedade civil organizada no setor saúde.
Trata-se de um projeto interinstitucional, desenvolvido sob a coordenação dos pesquisadores Assis Mafort e Sonia Fleury, em interação com pesquisadores de diferentes instituições acadêmicas do País, em um esforço de produção coletiva, com autonomia para dar o tratamento teórico-metodológico mais adequado a cada uma das linhas de pesquisa, dentro de uma proposta comum.
Nos diferentes capítulos, discutiremos as principais questões relativas às pressões políticas produzidas pela pandemia de covid-19 sobre as instituições federativas nacionais, a configuração do modelo federativo Pós-Constituição de 1988, como um arranjo flexível e propício a inovações, e seu tensionamento pela conjuntura da pandemia, assim como a proposta metodológica e o marco conceitual empregados na análise de atores, instituições, arenas e dispositivos acionados no novo arranjo federativo.
Ao longo dos capítulos que compõem o livro, argumentamos que, diante do vácuo de coordenação federativa produzido pelo posicionamento negacionista do governo Bolsonaro, o modelo federativo da Constituição de 1988 se tornou a base para a emergência de um arranjo inovador de coordenação durante a pandemia, permitindo a especialização dos demais atores e instituições federativas. Mais do que omissão, o governo nacional atuou em permanente confrontação com os entes subnacionais, que se organizaram e agiram de forma mais articulada entre si e com a sociedade civil para enfrentar a pandemia.
Nesse novo arranjo, os governos estaduais e municipais assumiram o protagonismo na definição das regras sanitárias e na organização da rede de serviços, a Câmara dos Deputados e o Senado Federal foram os responsáveis pela formulação de políticas nacionais (emprego e renda, finanças públicas, apoio a estados e municípios etc.), e o Supremo Tribunal Federal (STF) atuou na resolução de conflitos e na preservação das prerrogativas dos entes subnacionais. O Conass e os consórcios regionais de desenvolvimento assumiram papel relevante na articulação em rede dos governos estaduais, a Frente pela Vida (FPV) reavivou a militância do Movimento da Reforma Sanitária e a CPI da Pandemia lançou novos olhares sobre a omissão do governo federal.
Os estudos desenvolvidos nesta pesquisa indicam, portanto, que a arquitetura flexível das relações federativas construída no setor saúde a partir da Constituição de 1988, e institucionalizada na dinâmica interinstitucional e colaborativa do SUS, possibilitou a emergência de novas relações e instituições nesse período de conjuntura crítica e de tensões, que caracterizaram o federalismo de confrontação da pandemia de covid-19.
A análise detalhada da reconfiguração das relações federativas nos diferentes capítulos, que incluem uma ampla gama de atores e as arenas nas quais interagiram nesse processo, coloca-nos diante de reflexões sobre as possibilidades e as limitações acerca da manutenção de um novo desenho federativo, perante a conjuntura política iniciada no pós-pandemia e com a eleição de um novo governo democrata e progressista.
Por outro lado, alerta-nos para as tensões que o novo governo terá que enfrentar, decorrentes do desequilíbrio instaurado na relação entre os poderes republicanos e a exacerbação das polarizações ideológicas e da intolerância política amplamente fomentadas e amplificadas pelo uso massivo das tecnologias informacionais. Nesse contexto, a permanência e a sustentabilidade das novas relações federativas dependerão, fortemente, da capacidade de institucionalização e calibragem dos arranjos emergentes e do posicionamento das novas coalizões partidárias que o governo federal e os estados assumiram a partir de janeiro de 2023.