A outra transição contextual é a epidemiológica, que se expressa no crescimento relativo das condições crônicas na carga de doenças. No Brasil, as doenças crônicas já representam mais de 70% dessa carga. Se considerarmos o conceito de condições crônicas, que engloba todas as condições que exigem dos sistemas de atenção à saúde uma ação proativa, contínua e integrada em redes – o que inclui a atenção à pessoa idosa -, esse percentual chega a aproximadamente 80% da carga total doenças. Como consequência, pode-se estimar que mais de 75% dos gastos do SUS são por condições crônicas.
Por outro lado, a transição dos sistemas de atenção à saúde expressa em suas culturas e seus modelos de gestão e de financiamento dá-se de forma lenta e superficial.
Essa brecha entre a transição das condições de saúde e a transição dos sistemas de atenção à saúde rompe o princípio fundamental do postulado que indica que deve haver uma coerência entre essas duas formas de transição. Isso leva a uma ruptura que constitui a crise medular dos sistemas de atenção à saúde, que não conseguem se adaptar, oportunamente, ao crescimento das condições crônicas. O resultado é que temos hoje, no Brasil e em todo o mundo, uma incoerência entre uma situação de saúde de tripla carga de doenças, com predomínio relativo forte das condições crônicas e uma resposta social dada por sistemas de atenção à saúde fragmentados, que foram desenvolvidos na metade do século passado. Ou seja, temos um descompasso entre uma situação de saúde do século XXI, sendo respondida por um sistema de atenção à saúde do século XX, que se volta relativamente para a atenção aos eventos agudos.
O sistema fragmentado vigente se caracteriza por ser organizado por componentes, por níveis hierárquicos e para a atenção aos eventos agudos, para os indivíduos, de forma reativa, com ênfase em ações curativas, reabilitadoras e no cuidado profissional e sem um ente de coordenação dos fluxos de pessoas, produtos e informações. Esses sistemas fragmentados fracassaram totalmente no enfrentamento das condições crônicas. Pesquisa recente sobre a hipertensão arterial feita por 1200 estudos populacionais e com uma amostra de mais de 1 milhão de pessoas em vários países do mundo mostrou que de cada 100 pessoas menos de 10 delas estavam em tratamento e com a pressão arterial controlada. Não é diferente no Brasil em que estudos evidenciaram que de cada 100 pessoas com diabetes apenas 13 estavam em tratamento e com a glicemia controlada.
A conclusão é clara: há que se superar a fragmentação do cuidado para restabelecer a coerência entre a situação de saúde com forte predomínio de condições crônicas e os sistemas de atenção à saúde público e privado em nosso País.
Essa mudança não é trivial porque a implica enfrentar a fragmentação do cuidado que é, segundo a teoria da complexidade, um problema perverso (wicked problem). Esses problemas não são meramente complicados ou técnicos e não podem ser resolvidos pela simples aplicação da lógica ou do poder computacional ou pelos programas de melhoria da qualidade, requerendo intervenções amplas de reimaginação, que convocam soluções em redes e inovações disruptivas. Ou seja, impõe-se um movimento de transição do sistema fragmentado para a organização das redes de atenção à saúde que se caracterizam por: um contínuo de atenção, um equilíbrio entre os eventos agudos e as condições crônicas, um foco numa população, uma construção dos sujeitos como agentes de sua saúde, uma ação proativa, um cuidado integrado (promoção, prevenção, cura, reabilitação e paliação), uma ênfase no cuidado interdisciplinar e uma coordenação pela atenção primária.
Felizmente, o SUS construiu uma base normativa muito potente que se materializa na Portaria nº 4.279 de 2010 e no Decreto nº 7.508 de 2018, uma das melhores em escala internacional. Trata-se agora de transformar essas normativas em prática cotidiana de nosso sistema público de saúde, o que não é uma tarefa fácil conforme demonstra a experiência internacional nesse tema.
Do ponto de vista operacional, a construção das redes de atenção à saúde, em função da normativa do SUS, tem sido realizada por linhas de cuidado. Ainda que haja boas experiências com esse modelo, ele pode introduzir limitações ao alcance do objetivo fundamental das redes que é superar a fragmentação do cuidado por meio da obtenção do maior grau de integração possível nos sistemas de atenção à saúde. Isso pode ocorrer conforme o recorte das linhas de cuidado. Nesse sentido, seria interessante considerar um modelo alternativo estruturado por ciclos de vida que seria ajustado, onde couber, dentro de cada ciclo, por linhas de cuidado. Esse modelo poderia propiciar níveis superiores de integração e um dos ciclos certamente seria o das pessoas idosas, que guarda relações de interdependência com os outros ciclos que lhe antecederam no curso da vida.
A rede da atenção à saúde das pessoas idosas não se estrutura em função das doenças, mas de uma condição de saúde singular. Isso implica transitar do conceito de doenças para o de condições de saúde definidas pela Organização Mundial da Saúde como as circunstâncias na saúde das pessoas que se apresentam de forma mais ou menos persistentes e que exigem respostas sociais reativas ou proativas, episódicas ou contínuas e fragmentadas ou integradas dos sistemas de atenção à saúde, dos profissionais de saúde e das pessoas usuárias. As condições de saúde podem ser divididas em condições agudas e condições crônicas. Por consequência, todas as doenças crônicas são condições crônicas, mas também o são os fatores de risco individual biopsicológico, as doenças transmissíveis de curso longo, as condições maternas e perinatais, os distúrbios mentais, as deficiências físicas e estruturais contínuas e a manutenção da saúde por ciclos de vida.
Portanto, a atenção à pessoa idosa é uma condição crônica que pode eventualmente evoluir para um evento agudo que expressa o somatório das condições agudas e dos traumas com as condições crônicas agudizadas. Disso resulta que a atenção a essa pessoa não deve ter como foco as doenças, mas uma funcionalidade global estabelecida pelas condições de autonomia e independência, intimamente relacionadas ao funcionamento integrado e harmonioso dos sistemas da cognição, do humor/comportamento, da mobilidade e da comunicação.
A atenção à pessoa idosa é predominantemente uma condição crônica e, por consequência, ela deve ser regida por modelos de atenção às condições crônicas sustentados por evidências científicas que têm sido aplicados, com sucesso, em vários países do mundo, inclusive no Brasil.
Esses modelos têm como base propostas derivadas da determinação social da saúde e envolvem cinco níveis: nível 1, a promoção da saúde por meio de projetos intersetoriais; nível 2, a prevenção das condições de saúde por meio de ações sobre comportamentos e estilos de vida; e níveis 3, 4 e 5, a clínica das condições crônicas estabelecidas que varia em função da complexidade, como condições simples, complexas e muito complexas e que são manejadas por tecnologias de gestão da clínica. Os níveis 3 e 4 são respondidos pela gestão da condição de saúde e o nível 5 pela gestão de caso.
Os modelos de atenção às condições crônicas assentam-se em cinco pilares: a promoção da saúde, a prevenção das condições de saúde, a estabilização, o autocuidado apoiado e a estratificação de risco. Nos modelos de atenção às condições crônicas, a estratificação de risco pode ser feita de várias formas, mas há uma proposta denominada de pirâmide de risco que tem sido aplicada internacionalmente e que apresenta bons resultados sanitários e econômicos.
A estratificação de risco permite o manejo clínico diferenciado por estratos de risco, a introdução da gestão da clínica, a distribuição relativa do autocuidado e do cuidado profissional, a concentração ótima da atenção dos membros das equipes multiprofissionais no cuidado profissional, a composição relativa da atenção entre profissionais generalistas e especialistas e a racionalização da agenda dos profissionais de saúde. É ela que permite concretizar alguns objetivos das redes de atenção à saúde como prestar a atenção certa, no lugar certo e com a qualidade certa.
Há evidências de que estratificação de risco tem demonstrado resultados sanitários importantes como a melhoria da qualidade de vida das pessoas, uma maior estabilização das condições crônicas, a redução das internações hospitalares e das taxas de permanên-cia nos hospitais e o aumento das ações de autocuidado pela população.
Além disso, a estratificação de risco traz melhores resultados econômicos porque os cuidados são distribuídos otimamente segundo os estratos. A organização das pessoas usuárias, segundo as diferentes complexidades, permite orientar as intervenções em relação aos grupos de risco e utilizar mais racionalmente os recursos. As evidências mostram que em qualquer sistema de atenção à saúde 80% das pessoas usuárias são pessoas com condições crônicas simples que devem ser atendidas somente na atenção primá-ria à saúde com um componente forte de autocuidado apoiado; 15% a 20% são pessoas com condições crônicas complexas que devem ser atendidas na atenção primária com a participação da atenção especializada; e 1 a 5% são pessoas com con-dições crônicas muito complexas que convocam, além dos cuidados por equipes da atenção primária à saúde e de atenção especializada, a tecnologia da gestão de caso. Assim, a estratificação de risco permite chegar a outro objetivo fundamental das redes de atenção à saúde que é a atenção certa com o custo certo.
O impacto econômico da estratificação de risco pode ser visto, por exemplo, no fenômeno das filas nos sistemas de atenção à saúde, um grave problema no SUS, que constrange o acesso e contribui para as queixas da população em relação ao nosso sistema público de saúde. Tome-se, como exemplo, as filas por atendimentos nas unidades ambulatoriais especializadas que, normalmente são enfrentadas por aumentos da oferta. Esse tipo de solução não é sustentável porque desconhece que, muitas vezes, há problemas de demanda como é o caso recorrente de pessoas com condições crônicas simples demandando a atenção ambulatorial especializada, quando deveriam estar sendo atendidas nas unidades de atenção primária à saúde. No SUS há vários exemplos de organização de redes de atenção à saúde que eliminaram as filas ou as tornaram gerenciáveis identificando as pessoas com condições crônicas simples e preparando a atenção primária para atendê-las.
O tema deste trabalho, o IVCF 20, está fortemente ligado ao pilar da estratificação de risco na rede de atenção à pessoa idosa. E isso coloca este instrumento como fundamental para o trabalho em redes de atenção à saúde que levem a melhores resultados sanitários e econômicos no SUS.
A rede de atenção à pessoa idosa no SUS deve considerar as condições reais da oferta de profissionais para sua implantação. Preocupa especialmente o desequilíbrio entre oferta de profissionais envolvidos nessa rede e a crescente demanda que se expressa no incremento da população idosa. Recorrendo-se ao estudo de Demografia Médica 2023 publicado pela Faculdade de Medicina da USP e pela Associação Médica Brasileira, pode-se verificar que no Brasil há 2.670 médicos geriatras, o que significa 1,5 geriatras por 100.000 habitantes e um geriatra para 11.140 pessoas idosas, o que reflete uma situação de oferta bastante insuficiente. Na força de trabalho médica, os geriatras representam 0,5% do total dos especialistas. Para atender a um crescimento significativo da população idosa, o número de médicos residentes é de 301, 0,7% dos residentes médicos no País. Some-se a isso, o problema da má distribuição desses geriatras: por região, 2,0% estão na região Norte, 8,4% na região Centro-Oeste, 16,2% na região Nordeste, 14,4% na região Sul e 58,9% na região Sudeste; e 65,8% estão nos municípios de capitais e 28,6% no interior.