O Brasil está cada dia mais longe de manifestar respeito a um direito essencial, que é o direito à vida e à segurança sem distinção de raça ou cor, proclamado pela Declaração Universal dos Direitos Humanos.
O Sistema de Informações de Mortalidade do Ministério da Saúde, construído com base nos padrões internacionais da Organização Mundial da Saúde, é a única fonte que temos disponível, até os dias de hoje, que verifica em nível nacional o quesito raça/cor das vítimas de homicídio. Esse item só foi incorporado em 1996, mas nos primeiros anos de vigência seu preenchimento foi muito deficitário, melhorando de forma progressiva.
Assim, a partir de 2002, quando a identificação da raça/cor já estava na casa de 92%, pudemos considerar os dados suficientemente confiáveis para iniciar as análises sobre o tema. O último dado divulgado, até o momento, corresponde ao ano de 2010.
Segundo os registros desse sistema, entre 2002 e 2010 morreram assassinados no país 272.422 cidadãos negros, o que dá uma média de 30.269 assassinatos por ano. Só em 2010 foram 34.983. Na cruenta Guerra do Iraque, as estimativas mais elevadas indicam que de 2003 até fins de 2009 morreram 110 mil pessoas, incluindo civis, o que significa 15,7 mil por ano.
No Brasil, país que não aparenta ter conflitos étnicos, religiosos, de fronteiras, raciais ou políticos, morre assassinado o dobro de cidadãos negros todos os anos e mais do triplo – 52.260 em 2010 – de seus habitantes de todas as raças e cores.
Embora os números sejam preocupantes, inquieta mais ainda a tendência crescente dessa mortalidade discriminante. Se os índices globais de homicídio do país nesse período mudaram pouco, em torno de 27 homicídios para 100 mil habitantes, foi em razão de uma associação inaceitável de queda dos homicídios de brancos e crescimento dos homicídios de negros:
• Considerando o conjunto da população, entre 2002 e 2010 o número absoluto de vítimas brancas de homicídio caiu de 18.867 para 14.047, queda de 25,5%. Já as vítimas negras cresceram de 26.952 para 34.983, incremento de 29,8%.
• Com isso, o índice de vitimização negra na população total, que em 2002 era 65,4% – morriam assassinados, proporcionalmente, 65,4% mais negros que brancos –, em 2010 pulou para 132,3%.
• As taxas de vítimas entre os jovens negros – 15 a 29 anos de idade – duplicam, ou mais, os da população total. Assim, em 2010, se a taxa de homicídio da população negra foi de 36 em 100 mil, a dos jovens negros foi de 72 para 100 mil.
• Com isso, a vitimização de jovens negros, que em 2002 era de 71,7%, em 2010 pulou para 153,9% – morrem, proporcionalmente, duas vezes e meia mais jovens negros que brancos.
• Os dados também apontam que essa vitimização negra está crescendo de forma rápida e preocupante por suas implicações sociais e políticas.
Esse é o panorama nacional, a média do país. Mas, se olharmos para as unidades da federação e, mais ainda, para os municípios, veremos situações extremas que deveriam ser fonte de séria atenção:
• Seis estados apresentaram, em 2010, taxas de homicídio acima de 50 para 100 mil negros: Alagoas, Espírito Santo, Paraíba, Pará, Pernambuco e Distrito Federal.
• Oito unidades ultrapassaram a marca dos 100 homicídios para 100 mil jovens negros: Alagoas, Espírito Santo, Paraíba, Pernambuco, Mato Grosso, Distrito Federal, Bahia e Pará.
• Na Paraíba, em 2010, foram registrados 47 homicídios brancos e 1.335 homicídios negros. Considerando as respectivas populações, a taxa de homicídios brancos foi de 3,1 para 100 mil brancos contra 60,5 para 100 mil negros. Dessa forma, o índice de vitimização negra foi de 1.824: para cada branco morreram, proporcionalmente, dezenove negros.
• Diversos especialistas estabelecem que níveis acima de 10 homicídios para 100 mil habitantes caracterizam situação de violência epidêmica. Todos os estados brasileiros superam esse patamar. As unidades com as menores taxas de homicídios negros em 2010, Santa Catarina e Piauí, ostentavam, respectivamente, 13,3 e 15 homicídios para 100 mil negros.
• A heterogeneidade de situações torna-se ainda maior quando desagregamos os dados para os municípios do país, com casos extremos como o de Ananindeua, no Pará, onde em 2010 foram registrados 33 homicídios brancos e 705 negros, o que origina taxas de 29,3 homicídios para 100 mil brancos e 198,8 homicídios para 100 mil negros. No outro extremo, 2.936 municípios – 52,8% do total nacional – não registraram nenhum homicídio negro em 2010.
• Não muito diferente é o panorama de algumas capitais do país, como João Pessoa (PB), onde, em 2010, foram assassinados 16 brancos e 545 negros, taxas de 4,9 homicídios brancos e 140,7 negros. Ou Maceió (AL), com 17 vítimas brancas e 774 negras.
Dois fatores devem ser mencionados para a compreensão da situação. Em primeiro lugar: a crescente privatização do aparelho de segurança. Como já ocorrido com outros serviços básicos, como a saúde, a educação e, mais recentemente, a previdência social, o Estado vai se limitar a oferecer, para o conjunto da população, um mínimo – e muitas vezes nem isso – de acesso aos serviços e benefícios sociais considerados básicos.
Para os setores com melhor condição financeira, serviços privados de melhor qualidade. Com a segurança vem ocorrendo esse processo de forma acelerada nos últimos anos. A pesquisa domiciliar do IBGE de 2011 é clara sobre as possibilidades
diferenciais de acesso a serviços privados de melhor qualidade: as famílias negras tinham uma renda média de R$ 1.938,19, e as brancas, de R$ 3.183,07, isto é, 64,2% a mais.
Em segundo lugar, e reforçando o anterior, as ações de segurança pública distribuem-se de forma extremamente desigual nas diversas áreas e espaços geográficos, priorizando sua visibilidade política e seu impacto na opinião pública e, principalmente, na mídia. Assim, em geral áreas mais abastadas, de população prioritariamente branca, ostentam os benefícios de uma dupla segurança, a pública e a privada, enquanto as áreas periféricas, de composição majoritariamente negra, nenhuma das duas.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, pedra fundamental de nossa moderna convivência, estabelece que: “Toda pessoa tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal […] sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição”. Temos ainda um longo caminho para tornar realidade esse direito fundamental proclamado em 1948.
Por: Julio Jacobo Waiselfisz
Coordenador da Área de Estudos da Violência da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso) e pesquisador do Centro Brasileiro de Estudos Latino-Americanos (Cebela).
Fonte: Portal Cebes